quinta-feira, 1 de outubro de 2009


Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Dispersão (exc.), Mário de Sá-Carneiro

domingo, 19 de julho de 2009

À janela onde se recolhe
O sândalo velho e já gasto
Da viola que muito outrora
Brilhara, com mandolina ou flauta,

Está a Santa pálida, que mostra
O livro velho desfolhado
Do Magnificat, outrora
esparso, na prece vesperal:

A essa vidraça de custódia
Que rasa uma harpa formada
Pelo Anjo em seu nocturno voo
Para a falange delicada.

Do dedo que, sem o velho sândalo
Nem o velho livro, ela estende
Sobre a instrumental plumagem,
Na música só do silêncio.

Santa, Stéphane Mallarmé

domingo, 10 de maio de 2009


Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, de meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: “Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!…”

Calaram-se os poetas, tristemente…
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha torre esguia junto ao céu!...


Torre de Névoa, Florbela Espanca

A morte chega cedo,
Pois breve é toda a vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

Cancioneiro, Fernando Pessoa

domingo, 3 de maio de 2009


Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Segue o teu destino, Ricardo Reis / Fernando Pessoa

sábado, 18 de abril de 2009


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A pé e alegremente tomo a estrada larga,
São, livre, com o mundo por diante,
O longo caminho diante de mim levando-me aonde quiser.

Não peço boa sorte, eu próprio sou a sorte,
Não há mais lamentos, mais demoras, não preciso de nada,
Basta de queixas entre paredes, bibliotecas, polémicas,
Forte e contente como a estrada larga.


Canto da Estrada Larga (exc.), Walt Whitman (trad. José Agostinho Baptista)


-

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

A espantosa realidade das coisas (exc.), Alberto Caeiro / Fernando Pessoa.